terça-feira, 20 de março de 2012






A Imagem construída na pintura de José Maria Dias da Cruz


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Melhor do que ninguém, Dias da Cruz fala assim de sua obra: “Sempre parto do princípio que a pintura é a transposição de uma imagem construída em cima de uma idéia. A partir dessa idéia que transpomos, podemos fazer outras retransposições , outros desdobramentos. Relacionando apenas seus problemas conceituais, paralelo às sua preocupações formais, estaremos dando elementos para decodificação da obra e, por conseqüência, para suas várias interpretações.”

No caso das pinturas de Dias da Cruz, objetos aparentemente sem importância (peças de jogo de xadrez, cartas, castiçais com velas, uma embalagem em formato de tubo, pincel, dos de sua verdadeira propriedade e função na realidade concreta, são transpostos para uma realidade percebida e idealizada pelo artista. Desse modo, a realização no plano das figuras citadas dá-se, segundo ele próprio define, conforme o grau de envolvimento que, conscientemente, queira lhe dar.”

Em outras palavras, esse desenvolvimento tanto pode concorrer no limite de seu raciocínio para manter as qualidades permanentes que os objetos em si apresentam na realidade concreta, quanto determinar desdobramentos em diferentes figurações que o artista percebe. Uma peça de xadrez, então, pode ser transposta para uma tela como um objeto individualizado, em representação quase fotográfica, e ter sua realidade reformulada ao ser transposta para uma realidade contrária e difusa.

São muitos os artifícios de Dias da Cruz para resolver os problemas conceituais e preocupações formais de seu método de elaboração de um quadro. Por vezes esse objeto individualizado, com a divisão espaço em sucessivos planos e sofrendo deslocamentos de eixo, sem perspectiva, e até invertido e suspenso, encoberto por plano, prolongado a uma imagem virtual através de um espelho, visto como tal ou substituído por outro objeto do mesmo parentesco formal Volta e meia é esquematizado como um objeto não individualizado, reduzido a linhas tracejadas, mas perfeitamente identificado segundo sua espécie e, por último, gera uma abstração não diretamente e sim por associação.

Retranspostas em superfícies, sem perspectiva, estas figuras, escapando do primeiro plano da realidade concreta, buscam a fronteira onde podem ser vistas ou percebidas alhures como uma realidade percebida, mas de significado abstrato e por assim dizer amplo e suscetível a interpretações de várias ordens. Para Dias da Cruz, já que sempre se transpõe uma realidade percebida, nunca uma concreta, “pelas diversas transformações e desdobramentos dessa realidade concreta, operadas pelo pintor, quando de sua transposição, chega-se a um ponto de abstração ou entrecruzamentos de linhas de raciocínio tal que o acaso passa a ser um componente desta operação e ao mesmo tempo, o limite desse pensamento.”

Para compreender a permutação dos elementos dispersos dentro do método cerebral de Dias da Cruz é necessário transpor o plano da realidade concreta do objeto, conhecer as fronteiras de sua imponderabilidade, onde pode adquirir o significado de uma abstração de uma imagem que ilude, para além da aparência, sem perder as qualidades que o individualizam. Organizados como “naturezas mortas”, são elementos que se combinam durante o processo de conhecimento do artista para destacar e atenuar a contradição de duas realidades muito próximas; a palpável e indizível, a que se toca e esconde a parte invisível que sentimos e nem sempre alcançamos. A primeira existe a partir de um discurso articulado pelo artista sobre aspectos da pintura. A segunda ultrapassa o pensamento do pintor e formula ouros significados de natureza primordial, aqueles que preferencialmente ignoramos porque estão além de nossa inteligência e compreensão. Mas coexistem conosco à sombra de toda construção, talvez como contraponto inimiga que sufocamos quando vem à tona.

Do ponto de vista da formulação estética, esses quebra-cabeças propõem verdadeiras equações que buscam resolver questões formais. Porém o impacto casual do espectador se concentra na relação ambígua que Dias da Cruz provoca com a representação, aproximando elementos de projeção duradoura com transitórios, no sentido de reconhecer o absurdo da realidade concreta e, por extensão, modificar os conceitos da psicologia de projeção do homem.

Guido Goulart

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