domingo, 19 de agosto de 2012


CÉZANNE, A COR, O CINZA SEMPITERNO E O SERPENTEAMENTO

“É preciso ver a natureza como ninguém a viu antes”
 Paul Cézanne

 Há um problema complexo para se entender a cor na obra de Cézanne. Como observa o crítico Manlio Brusanti em seu livro A História da Cores, a cor está bastante recalcada em nossa cultura. Diz mais ainda, que com isso atualmente o homem está cada vez mais perdendo uma percepção mais profunda das cores e dos coloridos. Concordo. Assim diremos, parodiando o mestre, que é preciso ver Cézanne como ninguém o viu antes. Afinal, foi também ele quem disse que queria chegar à perspectiva unicamente pelas cores. Fica então claro que sua obra não deve ser estudada a partir da frase na qual ele se refere ao cone, a esfera e o cilindro, frase mal compreendida, pois os que a interpretaram trocaram o cone pelo cubo.
  Há outras frases do mestre que merecem nossa atenção e estas duas ficaram sem resposta. Em carta a Pissarro, em 1866 ele escreveu: “Você tem perfeitamente razão de falar do cinza, somente ele reina na natureza e alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa.” Que cinza é esse? Ficou a pergunta. E em suas anotações escreve: “A luz não existe para o pintor, tem que ser substituída por outra coisa, a cor. Fiquei contente comigo mesmo quando descobri isso.” Por que se diz tanto que cor é luz? E tem mais, Cézanne não aceitou a maneira como os impressionistas teorizaram a cor, ou seja, pensada a partir do espectro e de um círculo cromático absoluto. Temos que romper este cerco.
 Nos meus estudos sobre a obra de Cézanne estou tentando repensá-lo levando em conta essas duas frases, e nem tanto outra, esta sempre citada pelos historiadores da arte na qual ele diz o seguinte: “Tratar a natureza através do cone, da esfera e do cilindro... etc."  Seguindo o mestre descartei o círculo cromático absoluto que classificava as cores em primárias e secundárias. Pensei no cinza sempiterno como um ponto sem nenhuma dimensão, como um pós ou pré-fenômeno, e causa e efeito dos coloridos. Redefini o rompimento do tom como não mais resultante de misturas pigmentares e com um valor absoluto e sim como sobreposição na cor de sua respectiva pós-imagem. Reinterpretei uma frase de Leonardo da Vinci na qual ele diz: “Devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares.” Considerei a cor abstrata substantiva como uma ideia platônica e a cor concreta adjetiva com uma dimensão temporal face aos ininterruptos rompimentos dos tons.
 A cor é, dentro do pensamento verbal e dentro das lógicas decorrentes desse pensamento, impossível de ser racionalizada. No século XVIII criou-se um círculo cromático no qual as cores eram classificadas em primárias, secundárias, com valores absolutos, etc. com a pretensão de explicar todos os fenômenos cromáticos da Natureza e, assim, aprisioná-las dentro de uma mentalidade quantitativa na medida em que ficavam subordinadas às formas, estas mais racionais. Com isso, ficou eclipsada a possibilidade de se pensar as cores e o colorido fora do modelo imposto por este círculo. Além do mais, este círculo cromático é regido por uma lógica que criou os conceitos de cores puras, pastéis e neutras, e atrelando assim as questões cromáticas ao discurso verbal. Dentro do pensamento plástico a cor é enigmática, portanto passível de ser percebida por outra lógica, como diz Cézanne, nada absurda. 
 Vale ressaltar que a partir desse círculo classificamos as harmonias em termos absolutos e, em consequência, igualmente as cores. Dá-se o mesmo em relação aos contrastes, todos com valores absolutos e estáticos. Nesse círculo as cores são explicadas pelas misturas pigmentares, as quais foram mais tarde denunciadas por Duchamp. Claro, estudam-se alguns outros fenômenos como os contrastes simultâneos, por exemplo. Mas na base está um pensamento lógico, atualmente questionado, decorrente do discurso verbal. A partir desse círculo cromático classificaram-se as harmonias, por exemplo. Estas seriam consoantes, dissonantes e assonantes. (No pensamento plástico, como a cor pode ser assonante ou neutra, vale dizer, uma não-cor?). Essas harmonias consideram uma mentalidade quantitativa, ou seja, explicam-se considerando ritmo como recorrência pressentida, que é racional e ficando a cor subordinada às formas. E, assim, bem longe do que Cézanne nos adverte: “Na natureza tudo está colorido.” A partir do círculo cromático absoluto ficamos presos à lógica aristotélica. Ou seja, à lógica do terceiro excluído, lógica esta que afirma que uma coisa não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente.  Esse círculo excluiu o que hoje nos é familiar, as incertezas.
 Descartando-se o círculo cromático absoluto, como, parece-me, também o fez Cézanne, passamos a considerar um terceiro termo. A dimensão espaço-temporal da cor, pelo rompimento do tom, nos permite entender o cinza sempiterno como um pré ou pós-fenômeno. Vale dizer, um cinza que não existe, mas que se manifesta na natureza. Isso aproxima a cor e o colorido da lógica do terceiro incluído, sendo o terceiro termo outras respectivas informações pertinentes.


 Escrevi um livro intitulado A Cor e o Cinza  utilizando-me, é claro, da linguagem verbal. Nele refiro-me ao conflito entre a percepção sensível e a linguagem. Nesse livro, para reforçar a disparidade entre a cor e o nome que lhe damos, cito o filósofo Mário Guerreiro, que diz:

Sim, pois onde estão as cores puras no mundo percebido? Na verdade, elas pertencem ao mundo nomeável, mas esse mundo nomeado reparte o mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que é o critério de relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre um abismo entre a percepção sensível e a linguagem, entre as qualidades percebidas e as qualidades nomeáveis, mas ficamos em dúvida se deveríamos concordar com a ideia de que o percebido só se faz passando pelo crivo na nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em detrimento de outros. Com certeza este é um problema que teria de ser colocado para uma fenomenologia, onde uma incursão nos domínios da pintura seria, certamente, bastante esclarecedora.

 Nesse sentido, podemos fazer com que haja uma convivência entre a percepção sensível e a linguagem verbal. Neste caso, consideramos a cor abstrata substantiva, que subsiste por si mesma na medida em que sua substância não se altera, é nomeável e é uma ideia platônica; e a cor concreta adjetiva, cuja condição é ser no colorido e está sempre se rompendo, possuindo uma dimensão temporal. Podemos, assim, lidar simultaneamente tanto com a percepção sensível quanto com a linguagem verbal.
 Procurei, através do estudo das questões que os pintores discutiram, chegar ao pensamento plástico. Apoiei-me em Poussin que se refere a um ver prospectivo, além de outro que considera apenas o aspecto dos objetos. Por esse olhar prospectivo Poussin  considera o saber do olho, os eixos visuais e as diversas distâncias. Braque diz que explicar uma coisa é substituir a coisa pela explicação. Nos livros que escrevi, A Cor e o Cinza e O Cromatismo Cezanneano, caí em parte, nessa sutil observação. O ato de olhar permite a experimentação e, obviamente, o ato poético, criativo, etc. Procurei desenvolver um pensamento plástico para sair desse impasse.
 Procurei entender a frase de Cézanne na qual afirma que a luz não existe para o pintor, etc. Portanto, o mestre de Aix, não se interessou pelo cromatismo impressionista. Disse mais ainda, que somente um cinza reina na natureza. Não se trata obviamente do cinza baseado na mistura do branco com o preto, pois esse não oferece nenhuma dificuldade. Digo que Cézanne nos preparou para pensar no cinza sempiterno, como passei a denominá-lo.
 Cabe enfatizar, que o cinza sempiterno, não tendo nenhuma dimensão, não existe como coisa observável. Por consequência temos quer abstrair para entendê-lo. Como é potencialmente ativo, na medida em que contém todas as cores de um colorido, manifesta-se na natureza. Rilke, nas suas cartas sobre Cézanne, diz também que ele, o cinza sempiterno, não existe. Ao se manifestar torna-se um pré ou pós-fenômeno. As cores de um colorido para ele divergem e convergem. Talvez seja apenas uma lógica plástica, na qual os contrastes têm um papel principal que é  percebida pelo pensamento plástico.
Observando-se o rompimento do tom tem-se uma ideia do cinza sempiterno.

 Além dessas questões, incluiu-se, na lógica da cor, a questão do serpenteamento vinciano. Leonardo, no Tratado da Pintura, diz que devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares e concavidades angulares, uma questão bem mais complexa do que afirmar, como se vê nas histórias das artes, que ele introduziu na pintura o esfumado. Este é apenas um procedimento e não uma questão teórica. 
 Podemos exemplificar. Se observarmos um objeto ora com um olho, ora com outro, podemos sentir que ele se desloca horizontalmente. Assim, o que está atrás pode ser visível com um olho e encoberto com o outro. Vejamos o quadro A Cabana do Jordão. Cézanne nos mostra a chaminé como se ela houvesse se deslocado e assim permitindo que possamos ver o que está atrás dela quando vista só com um olho, no caso o esquerdo. Se a víssemos, só com o direito, a chaminé estaria em outra posição e não deslocada da cabana. 


 Para experenciar este fenômeno basta olharmos nosso dedo ora com um, ora com outro olho e a uma distância de um palmo e meio mais ou menos. Observaremos esse deslocamento. Naturalmente quanto mais afastado o objeto, menor é o deslocamento. Cézanne ao representar a chaminé a pintou como se ela estivesse muito próxima. Podemos nos lembrar do que afirma o artista Milton Machado: "distâncias em proximidade.”     
 Podemos observar certa atenuação ou certa instabilidade do objeto, como se ele perdesse um pouco sua nitidez. Agora digo que o serpenteamento se manifesta entre as  distâncias percebidas entre uma posição e outra.
 Vejamos agora como o serpeteamento pode ser perceptível no colorido. Se o cinza sempiterno é um ponto não possui nenhuma dimensão, mas é potencialmente ativo,  pois nele temos todas as cores de um determinado colorido. Portanto, como afirma Rilke, ele não existe como fenômeno, mas se manifesta no quadro. Ao se manifestar passa a ser um fenômeno na medida em que se contrasta com as demais cores. No trajeto de uma cor em direção a sua oposta, considerando-se os rompimentos dos tons - um vermelho e verde, por exemplo -  no exato centro temos o cinza sempiterno. Ocorre que, ao lado do vermelho, ele passa a ser esverdeado; e ao lado do verde, vermelho esverdeado.
                       
                                     vm --------------------cz-------------------- vd

                                     vm ---------------|------|------|-------------- vd
                                                        tr vd<--- | --->tr vm

O serpenteamento se dá entre os rompimentos esverdeado e avermelhado, e pode ser de acordo com a intensidade e expressividade do quadro mais ou menos ondulante ou mais ou menos ziguezagueante.

                                     tr esverdeado|------|-----|tr avermelhado    
            
 Há ainda a famosa frase de Cézanne na qual ele reforça que tratar a natureza através do cone, da esfera e do cilindro não implica em uma geometrização considerando esses sólidos geométricos como os que possibilitam a construção do espaço pictórico, tomando-os como formas históricas da construção deste espaço. Além do mais, Cézanne afirmava que queria chegar à perspectiva unicamente pela cor. Interessante é que podemos compreender a afirmação de Duchamp na qual diz que o cubismo tem início em Cézanne, e passa pelo fauvismo (em minha opinião, sobretudo  Braque).
  Consideraríamos a geometria dos fractais, e novamente, o cinza sempiterno, que estaria presente tanto no todo como nas partes. Assim em uma fração teríamos também um elemento contido no todo, no caso, o cinza sempiterno. Daí poder-se dizer que as partes são maiores que o todo. Consideraríamos, também, a teoria do caos, e a partir daí pensaríamos no processo contínuo de organização e desorganização quando estados de entropia máxima são observados, o que metaforicamente nos levaria a considerar a questão de vida, morte e ressurreição.
 Tudo isso nos permite realmente pensarmos em uma geometria das cores considerando-se entre outras a topologia na qual, além das transformações e deformações contínuas, o cinza sempiterno seria uma fronteira. Ou na geometria dos fractais e novamente aquele cinza lhe dá consistência.
 Podemos imaginar também que essas surdas questões pertinentes ao pensamento plástico e, por extensão, às artes visuais, poderão, talvez, ser mais bem compreendidas pelas geometrias que hão de vir. Como, por exemplo, uma geometria das cores.
 Estas questões acima e outras estão estudadas no meu livro O Cromatismo Cezanneano, editado formato de e-book no seguinte endereço:


  José Maria Dias da Cruz – Florianópolis, julho de 2012







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